sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Os sentidos – Ana Paula Lisboa

A tradição era a de ouvir.
Ouvir canção de ninar, ouvir historia de Griô e aprender que quando o arroz estala é por que a água já secou. E aprendi assim, sem nem saber como.

A tradição era a de ver.
Ver o pôr do sol na Pedra, de ver passista sambar, de ver a barra da saia rodar. Gosto de ver o tempo passar e me ensinaram a ver o vento quando ele bate no cabelo da moça, e de tanto ver o mundo, aprendi. E aprendi assim, sem nem saber quando.

A tradição era a de cheirar os perfumes da penteadeira da madrinha, de cheirar canela em pau, pitanga no pé, de cheirar a chuva e aprender a dar o carinho mais gostoso do mundo, o cheiro. Descobri que cada coisa no mundo tem seu cheiro gostoso. E aprendi assim, sem nem saber como.

A tradição era a do prazer de estourar plástico bolha, de aprender na pele que lagarta verde queima, mas que as piores são as lagartas pretas, de saber que quando o corpo arrepia pode não ser de frio e perceber que tem gente que quando chega perto, faz minha mão suar. E aprendi assim, sem nem saber como.

A tradição era a de lamber colher de pau que faz brigadeiro, saber que cachaça boa é aquela de desce rasgando, saber que quem beija bem, beija de língua e descobrir mais tarde que amargo, azedo, doce ou salgado é muito pouco pra falar de todos os gostos que provo. E aprendi assim, sem nem saber quando.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Revolução dos seres requer a satisfação da poderosa mulher contemporânea –

Ela não esta nua, não dessa vez, desculpe, fez questão de preservar as peças de roupa. Ao menos uma, a blusa, só por que ele gosta.
Ele dessa vez não vai falar de política, sofrimento ou poderosos homens alemães, só por que ela gosta.
Ali não se ama!
Ele com vontade de sair esgoelando pela rua que não, não ama.
Ela, a Super Mulher Biônica-Invisivel-Telepata que solta raios pelos olhos, fogo pela boca, corpo de aço e punhos de Adamantium. Mas de coração de carne. Não ama.
Ele, de coração despedaçado e pulso aberto sangrando, não, não ama!
Ela, de blusa branca amassada...
Ele, sujeito indefinido do predicado que lhe quer, objeto indireto do meu sujeito lírico.
Não ama, não.
Ela, de leituras subversivas, de pensamentos eróticos, de pouco sonho, de pouca vista.
Ele, que cheira a poeira, que esquece da vida andando na rua até perder de vista.
Não se amam.
Não, não se amam não.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Desmedida - Ana Paula Lisboa

sem chão, sem nexo,
sem lenço
e sem documento,

sem dinheiro, sem pai nem mãe,
sem calor,
sem paixão, sem coração,
sem caixão, sem dor, sem sal, sem céu
nem inferno,

sem sapato, sem espaço,

sem calcinha, sem
celular,
sem aliança, sem amar, sem brinquedo pra brincar, sem computador, sem doce,
sem livro, sem caneta,
sem papel, sem Noel,

sem ouvir,
sem falar,
sem suar,
sem cair,

sem transar,

sem dormir,
sem casaco, sem meia, sem luva, sem toca,

sem tocar, sem ser tocada, sem ser amada, sem estudar, sem ler,
sem te ver,
sem tudo paro de escrever...

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Eu não vejo a hora - Ana Paula Lisboa

Eu não vejo a hora de enjoar de você.

Mas tu parece algodão doce,
Eu demoro pra enjoar,
Posso te comer quilos até isso acontecer.

Eu não vejo a hora de enjoar do seu rosto,
Na verdade, conto os minutos pra enjoar do seu gosto.

Mas tu é que nem doce de leite,
Eu demoro pra enjoar,
Posso te lamber quilos até isso acontecer.

Você é como musica djavaniana.
Eu ouço, ouço, mais rápido, mais lento,
Varias versões de você, na boca de outros,
De outras, na minha boca,
até o caroço, até a ultima gota de gozo.
Mas depois enjôo.

Mas tu é que nem dançar coco,
Eu demoro pra enjoar,
Vou suar muito contigo antes disso acontecer.

Eu quero enjoar logo de você.
Do seu cheiro, da sua mão no meu cotovelo,
Do seu abraço apertado, do seu chinelo de dedos.

Mas tu parece aquela blusa verde que eu amo,
Eu ainda não enjoei de usar,
Posso te vestir muito antes disso acontecer.

Só Quando - Ana Paula Lisboa

Quando eu escrevo é tudo inverdade. Quando eu escrevo quem fala é a minha mão, é a minha palavra gritando estridente. Quando eu escrevo quem fala é a minha boca, faladeira de besteira que me deixa envergonhada.

Eu abro bem os olhos pra não ouvir ninguém, quando eu escrevo, e fecho os ouvidos pra ver todo mundo.

Quando eu escrevo meu joelho direito reclama de eu ficar tanto tempo sentada. Tudo me dói, porque dói eu ter que escolher entre o bom e o ruim, quem fica e quem vai, quem vive e quem morre. Só escolho quando escrevo e por isso escrever é muito mais difícil que viver.

Quando eu escrevo é pra inventar o meu mundo, defeituoso e cheio de palavras soltas , a minha toca do coelho.

Os meus cabelos crescem mais rápido quando eu escrevo e perco 90 calorias por linha escrita. Não preciso beber água e nem comer.

Quando eu escrevo é pra ser bonita, gostosa, pra me convidarem pra posar nua. É por que quero ficar rica, famosa e ser invejada, não escrevo pra parecer culta.

Quando eu escrevo é só por que gosto de ver a minha letra, redondinha, desenhada no papel.
Não escrevo pra ser original, é pra repetir, plagiar, copiar e colar.

Quando eu escrevo é por que estou apaixonada, normalmente por um homem feio e barrigudo.
Quando eu escrevo é por que quero ser pervertida.Quero matar alguém, ou dar pra alguém, mas estou de mãos atadas para as duas coisas.

Quando eu escrevo, normalmente, é por que não encontrei nada melhor pra fazer.

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